domingo, 20 de abril de 2008

O culpado foi meu pai


Gilberto Prado

Embora com certa experiência de vida, a saudade apertava. Pela primeira vez fora do Recife, sentia falta dos amigos, do futebol de salão e, principalmente, do carinho materno. Estava começando a década de 1970 e eu passava a trabalhar no Diário do Povo de Campinas, São Paulo.

A telecomunicação era difícil. Conseguia, com o auxílio de uma simpática telefonista da Telesp, fazer uma ligação às segundas-feiras, para a minha mãe, dona Alayde. Isso me dava tanta paz de espírito quanto os três terços que até hoje rezo pelas almas, nesse mesmo dia da semana.

Por que segunda-feira? Porque na segunda-feira ela podia fazer uma resenha de tudo que era bom ou ruim ocorrido, principalmente entre os meus, durante o final de cada semana.

Minha mãe, no entanto, “aliviava” o que poderia se considerada “notícia ruim”. Era eufemista. Ninguém morria, por exemplo, “partia para uma melhor”. No início do diálogo, quando perguntava se estava tudo bem, respondia sempre a mesma frase: “Está tudo bem”.

Um dia, em data que sempre fiz questão de não gravar, no início do diálogo, respondeu de modo diferente à minha primeira pergunta, após a bênção, claro:

– Tudo bem nada, meu filho. O Santa Cruz perdeu e o culpado foi seu pai.

Como poderia isso acontecer? O meu pai, Diógenes, goleiro famoso, um dos responsáveis pelo primeiro tricampeonato do Santa Cruz (1931-32-33) estava sendo responsabilizado, na década de 70, quarenta anos depois, pela perda do hexacampeonato que tentava alcançar. E – o que é mais grave – acusado pela própria esposa, com quem conviveu por mais de 50 anos.

Nos jornais da época, as versões eram diferentes. Em uma, no Náutico, o herói chamava-se Celso, autor do gol da vitória. Em outra, no Santa Cruz, havia um vilão: Raul Marcel, o goleiro.

Na minha casa, entre meus familiares, prevalecia a afirmação da minha mãe:

– O culpado foi seu pai.

Se quem estiver lendo esta crônica tiver a paciência de continuar, posso explicar: Como todos na minha casa, minha mãe era “tricolor sadia” (ser tricolor é uma prova de sanidade). Religiosa e supersticiosa. Alguém lhe disse que se colocasse a imagem de uma santa dentro de um jarro de aguardente, o Santa Cruz nunca perderia. Ela acreditou e o ritual começou a funcionar. Em toda partida do santinha, uma imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, segundo a crença de minha mãe, “reforçava” o elenco coral.

Com a santa “afogada” em um jarro de cachaça, o Santa Cruz foi campeão, bi, tri, tetra e pentacampeão. Só faltava o hexa, que os “timbus” dizem ser luxo.

Chegou o dia da decisão, um domingo. Coincidia com o aniversário da minha tia, Almiragy, irmã dela, carinhosamente tratada como Mira, que residia no Cajueiro.

Minha mãe morava em Campo Grande, mas isso não se constituía um problema. Decidida, ela juntou o “arsenal de vitória”, com cachaça e tudo e levou para Cajueiro, bairro ainda pouco habitado e que, ao domingos, tudo era fechado, bares, mercearias etc (na época não havia supermercados).

Aí surgiu o problema para o meu pai, que a acompanhava na visita. Ele era chegado a uma “branquinha” e não havia como e onde comprar o “precioso líquido”. Aproveitou-se do descuido da minha mãe e, vez em quando, “roubava” um pouco da aguardente da santa.

Começou o jogo e minha mãe atenta, no pé do rádio, torcia pelo Santa Cruz, certa da vitória. O tricolor perdeu. Alguma coisa estava errada, no seu entender. A santa falhara, imaginava, um tanto decepcionada.

Mais tarde, quando juntava os seus pertences para voltar à sua casa, inclusive a santa, foi que descobriu que, durante o jogo, a imagem ficou em um jarro vazio. O meu pai tomou toda a aguardente.

Nunca ninguém lhe convenceu, enquanto conosco conviveu, que o meu pai não foi o responsável pelo fato do Santa Cruz não ser, também, hexacampeão pernambucano.

PS – Esta crônica é uma homenagem à minha mãe, Alayde Ribeiro Prado que, se estivesse conosco, completaria 100 anos este mês (22).

» Gilberto Prado é jornalista

Um comentário:

weberth disse...

alguem tem uma foto do diminutivo, para colocarmos num copo cheio de 51 e tocar fogo?!